Provavelmente você teve conhecimento da tragédia que aconteceu no dia 24 de agosto de 2017, durante a travessia Mar Grande – Salvador. Se você é da Bahia, deve ter visto na TV imagens e entrevistas de dor e sofrimento, com direito a trilha sonora no fundo. Além de péssimo, é brega. Se você é de fora, deve ter visto muitas especulações na internet e várias incertezas na TV.
Não quero falar sobre os possíveis responsáveis da tragédia, nem de quantas vezes os movimentos sociais de Vera Cruz denunciaram a situação das lanchas. Não me sinto confortável para falar das famílias das vítimas e muito menos dos sobreviventes. Meu bom senso não permite explorar até o último choro de um trauma que, provavelmente, não passará tão cedo.
A travessia, as condições das embarcações e os corpos no mar, não deixam minha mente desvincular da imagem do Navio Negreiro. Afinal, Mar Grande fica no município de Vera Cruz (BA), considerado em 1500 o Novo Mundo aos olhos dos portugueses que se tornou velho, mesmo sendo a 30 minutos da quarta maior capital do Brasil: Salvador!
Posso dizer que depois de ter pego a primeira lancha, no primeiro horário, pós tragédia e vendo o corpo de um senhor sendo trazido pelo mar até meus pés, consegui sentir o gosto da água salgada e do desespero que é tentar viver. A posição dos braços abertos, como se quisesse dizer: “Eu estou aqui!”, me fez voltar no dia 03 de março de 2015, quando vivi um desespero desse, em menor escala, enquanto fazia Raffiting em Itacaré (BA). Era carnaval e aniversário de minha mãe quando meu bote virou e minhas tentativas de salvação foram frustradas com o bote em cima da minha cabeça. Para minha felicidade, acordei em cima de uma pedra e só isso que lembro para contar.
Revivi tudo que já passei e que não superei. Pulei covas e mais covas para enterrar um menino de 6 meses. Minha última lembrança de cemitério foi há 11 anos, quando , mesmo não querendo, tive que dizer adeus a minha avó. O meu respeito e medo pelo mar, teve que ser superado sem eu está preparada, porque fiz a travessia inúmeras vezes e tentando fazer com que o medo não se igualasse ao tamanho da minha dor.
E depois de tudo isso, volto pra minha casa. Minha nova casa, vazia, sem ter alguém me esperando para abraçar. Afinal, preciso aceitar que estou em outro momento da minha vida. Uma vida adulta.
Depois da tragédia de Mar Grande, só confirmei minha incapacidade de morar sozinha. Não porque não sei cozinhar direito – não que isso não seja verdade – , nem porque preciso fazer tudo ao mesmo tempo para deixar a casa um ambiente legal de respirar. Mas porque eu sofro todas as vezes que não posso comentar com meus pais, que moram em Salvador, sobre o que está passando naquele momento na TV. Porque sinto falta dos gritos que minha mãe dava quando colocava a comida na mesa e eu demorava de sair do quarto. Ou quando chegava em casa e contava tudo que aconteceu no meu dia e meus pais estavam ali me escutando atentos. Dói voltar pra casa depois de vivenciar tragédias e dores que o mundo fora do ninho nos oferece e não ter quem abraçar quando chegar em casa. E o pior de tudo, é saber que você não vai conseguir dormir tão cedo, porque as imagens não saem da sua cabeça, e seus pais não estarão com você fisicamente para te acalmar. Você não será ninada até o sono chegar.
Talvez o nome disso não seja incapacidade. Apenas uma transição da vida adulta. Ou quem sabe um clichê romântico de dá importância a quem está com você agora. São tantas possibilidades e tentativas de traduções para dizer que eu sinto saudades de morar com meus pais. E não quero vivenciar mais tragédias para lembrar disso. O que me tira um sorriso do rosto é saber que eu e meus pais nos falamos todos os dias por telefone e toda ligação termina em: eu te amo!