Um dia desses conversando com uma amiga negra e jornalista, ela disse que gostaria de fazer faculdade de Direito para ser Defensora Pública. O motivo: Vilma Reis, mulher negra, é ouvidora geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Isso me levou para um outro pensamento. Como é ser uma criança negra no Brasil?
Parece incompreensível que Salvador, capital mais negra do Brasil, é uma das mais segregadas. Segundo o critério de autodeclaração do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2010, Salvador possui 79,4% de negros (pretos e pardos), 18,9% de brancos, 1,34% de amarelos e 0,28% de indígenas.
A Brown University e o IBGE criaram o ranking de segregação das cidades americanas e brasileiras, a partir do índice demográfico de dissimilaridade, de 0 a 100, utilizado para comparar a presença de dois grupos (negros e brancos) distribuídos em pequenas áreas em relação à composição total da cidade. Salvador (BA) está na quinta posição do ranking de segregação das capitais brasileiras. Em primeiro lugar encontra-se Porto Alegre (RS), seguida de Vitória (ES), São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG).
Tratando-se da infância e juventude, uma das coisas mais difíceis para crianças e adolescentes negros brasileiros, é construir sua identidade. Sem representatividade negra nos veículos de comunicação, nos espaços de poder e na escola, uma criança negra demora para se enxergar enquanto negra. Pior, demora a se enxergar nesses espaços.
Antes do Desabafo Social, quando tinha 14 anos, eu pensava em cantar. Isso porque ficava assistindo programas de calouros na televisão. Fiquei 2 anos fazendo violão clássico, encontrei amigxs pela vida e todo final de semana era motivo para voz e violão. Cantei algumas vezes pelo Pelourinho até surgir o Desabafo Social. Daí em diante, as demandas do Desabafo foram aumentando e o violão foi ficando de lado. Ou então, toda vez que me pediam para cantar, não conseguia de forma alguma. Não entendia o porquê de travar tanto.
Mas depois de um #NaRoda do Desabafo Social, no Capão Redondo em São Paulo, junto com Tássia Reis e Yzalú, tudo foi mudando. Elas disseram “Você precisa voltar a cantar”. Tive uma breve conversa com a Tássia e isso foi o suficiente para voltar a pegar o violão.
Me senti mais leve, mais viva, mesmo cantando e tocando sozinha no meu quarto.
No dia 24 de julho, em São Paulo, antes a banda Aláfia subir no palco, Liniker, Tássia , MC Soffia, Aláfia e eu, fizemos uma roda de celebração e de boas energias, falando da importância de nós, negros e negras, estarmos ocupando esses espaços de poder. Cada um na sua área de atuação, mas todas nós estávamos com o poder na mão: a voz que tinha sido silenciada. Foi tão forte, mas tão forte, que as lágrimas foram caindo.
Na mesma hora a conversa com Tássia veio em minha cabeça. Ver e ouvir todxs aquelxs artistas cantando “Não posso acreditar que existe um Deus que feche com a segregação“, me trouxe a pergunta: Por que eu parei de cantar, se cantando e tocando é o único momento que estou realmente em paz comigo mesmo?
A verdade é que eu nunca tinha me enxergado nesse lugar da música, da forma que me enxergo hoje quando vejo Tássia, Liniker, Aláfia, MC Soffia, Dream Team do Passinho e outrxs artistas negrxs.
Eu amo fazer o que faço com o Desabafo Social, mas estava faltando alguma coisa. Era só voltar a fazer aquilo que adoro fazer: cantar e tocar, mesmo que seja no meu quarto. Estou muito mais feliz, desde aquele dia do Capão Redondo.